Só no ano passado foram registradas 550 ocorrências, segundo a Polícia Civil; agravamento da pena e criação da delegacia especializada influenciaram no aumento das denúncias na capital
Quem vê a alegria e a doçura da cachorrinha Vicky hoje em dia nem imagina o passado conturbado que ela vivenciou antes de chegar à atual tutora. Vítima de maus-tratos, a cadelinha chegou a perder um olho e teve outros problemas de saúde, além de traumas psicológicos.
Após os maus-tratos serem denunciados às autoridades, Vicky foi resgatada e conheceu o amor por meio da relação com a bancária Mariângela Brogni, 42 anos, que a adotou durante a pandemia e a cria com todos os cuidados que uma cadelinha cega de mais de 10 anos de idade precisa.
O caso de Vicky é um entre as diversas denúncias de maus-tratos a animais no Distrito Federal. Esse número cresceu nos últimos anos. Se em 2019 foram registradas 250 ocorrências, no ano passado, o número subiu para 550, um aumento de 120%. Esse tipo de crime abrange desde subnutrição a prática de abuso e mutilação.
O crescimento das denúncias ocorre em meio ao endurecimento da pena previsto na Lei nº 14.064/2020 e à implantação de uma delegacia especializada na capital federal, criada em agosto de 2023.
“A nova lei majorou a pena para o crime de maus-tratos a cães e gatos, com a punição passando para de dois a cinco anos de prisão, e agora não cabe fiança na esfera policial”, afirma o delegado substituto da Delegacia de Repressão aos Crimes contra os Animais (DRCA), Leonardo Alcanfor.
Mudança de cenário
Antes de 2020, esse era um crime de menor potencial ofensivo. “O autor não ficava preso: ia para a delegacia, assinava o termo de compromisso de comparecimento e era liberado. Agora, se ele é pego em flagrante maltratando o animal, é levado para a delegacia e fica preso. Isso é algo que mudou bastante o cenário”, completa o delegado. Além da prisão, a penalidade também traz pagamento de multa e a perda da guarda do animal.
Para Alcanfor, a mudança na legislação deixou a população mais confiante em registrar os casos para que pudessem ser investigados e penalizados. “O que acontece é que as pessoas vão percebendo que vale a pena denunciar, porque tem resultado. Nós apuramos 100% das denúncias, e, com certeza, o aumento das ocorrências levou à criação dessa delegacia”, acrescenta.
Foi o caso de Vicky. A autora da agressão foi sentenciada e perdeu a guarda do animal. Quem participou diretamente do resgate foi a advogada Ana Paula Vasconcelos, da Comissão de Proteção aos Animais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ela lembra que é sempre importante que as pessoas procurem as autoridades nesses casos, e nunca tentem fazer justiça com as próprias mãos.
“Se os vizinhos não tivessem denunciado e não tivéssemos a resgatado, essa cadela com certeza iria a óbito e a pessoa ficaria impune. Nós conseguimos dar um desfecho satisfatório dentro de toda essa tragédia. Acreditamos muito na parceria entre sociedade e governo para construir uma sociedade mais justa e menos cruel para os animais”, observa.
Antes com seis quilos e muitos traumas, hoje Vicky tem o peso ideal e adora interagir. Mariângela conta que a cadela levou um ano para se tornar mais afetuosa. Além do medo de apanhar, os barulhos mais fortes faziam com que ela se encolhesse.
“O amor é transformador. Quando eu a conheci, resolvi dar a chance de um final feliz para ela. Ela também me ensina que não podemos desistir, apesar de todas as dificuldades”, diz. “Se você não gosta de cachorro, não tenha. Não precisa maltratar.”
Como denunciar
As denúncias devem ser feitas pelo telefone 197. A ligação é gratuita e garante o anonimato do denunciante. A delegacia fica responsável pela investigação do caso a partir da identificação do autor.
“Sempre encorajamos a população a denunciar pelo nosso canal oficial. Tudo que ela tiver sobre o fato é muito importante. Imagens, suspeita de autoria, características da pessoa”, explica Leonardo Alcanfor.
A delegacia especializada fica no complexo da Polícia Civil, próximo ao Sudoeste, ao lado do Parque da Cidade, e funciona de segunda a sexta-feira, das 12h às 19h. A população também pode registrar a ocorrência pelos canais da Polícia Civil do Distrito Federal ou comparecer à delegacia quando se tratar de flagrante, principalmente para que uma equipe possa se deslocar até o local e realizar o flagrante, consequentemente deflagrando a prisão do agressor.
Os animais vítimas de maus-tratos costumam ser encaminhados pela delegacia a organizações da sociedade civil até que possam ser adotados por novos tutores.
“Essa é a nossa maior dificuldade: a destinação desses animais ,porque é difícil achar pessoas que queiram recepcioná-los”, diz. Por isso, a DRCA firmou uma parceria com a ONG ProAnima, em que a entidade organiza um cadastro com pessoas interessadas em adotar os animais com esse perfil.
A diretora-geral da ONG ProAnima, Valéria Sokal, conta que a parceria ocorreu devido às dificuldades enfrentadas pela Polícia Civil após as denúncias.
“O delegado nos procurou falando da situação; e, como não temos abrigo, oferecemos a possibilidade de divulgar o cadastro em nosso site”, lembra. “São animais que precisam de uma chance melhor, então estamos incentivando que as pessoas se sensibilizem; em vez de comprarem um animal, adotarem.”
Ao acessar o portal da Associação Protetora dos Animais do DF, o interessado deve preencher um formulário para se tornar titular de um lar voluntário de acolhimento do cadastro. Os dados são encaminhados à delegacia que entra em contato com os cadastrados para a adoção dos bichos.
Adriana Izel e Jak Spies, da Agência Brasília | Edição: Vinicius Nader